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Diálogo entre agricultores e nutricionistas garante qualidade para a merenda escolar

Vencer as limitações burocráticas do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e as limitações culturais das famílias que mantêm seus filhos em escolas particulares é o que buscam profissionais de Nutrição que atuam nas prefeituras e rede privada de ensino do Estado, na busca por ampliar a participação da Agricultura Familiar na merenda dos alunos.

Conscientes da maior qualidade dos alimentos oriundos do sistema familiar de produção – qualidade nutricional, ambiental e social –, essas nutricionistas engajadas têm feito uma grande diferença. Na verdade, o papel desse profissional é essencial para o crescimento da agricultura familiar na merenda escolar, pois é na montagem do cardápio que fica definido quais itens serão comprados, em que quantidade e em que épocas do ano.

A Lei 11947/2009 determina um mínimo de 30% dos recursos sejam empenhados na compra de produtos oriundos da Agricultura Familiar, sendo a Agroecologia e Agricultura Orgânica prioridades na contratação.

Cleyde, Francismara, Rafaela, Mario, Thiago … Século Diário ouviu dois agricultores que fornecem alimentos para merenda escolar e três nutricionistas engajadas no fortalecimento da Agricultura Familiar e da Agroecologia e que, por isso, usam todos os recursos legais e administrativos possíveis para regionalizar seus cardápios e viabilizar uma participação cada vez maior do pequeno agricultor.

Boa vontade, sensibilidade, flexibilidade, consciência, aprendizado. São as palavras evidenciadas pelas três entrevistadas, quando perguntadas quais qualidades o profissional de Nutrição precisa ter pra fazer acontecer essa parceria que tanto bem faz às crianças e à agricultura familiar.

Não basta cumprir a lei

“É muito fácil ter uma lei pra cumprir e só cumpri-la. Mas tem que olhar se está sendo realmente feita dos dois lados. A lei foi criada pra fortalecer a agricultura local”, enfatiza Cleyde Christ Hoffmann, coordenadora da Alimentação Escolar de Cariacica.

“A gente faz os cardápios pensando na lei e também no agricultor, o que ele produz toda semana, e tenta colocar de forma criativa, para não ficar repetitiva. Quando tem essa parceria, tudo funciona bem: a criança recebe um alimento saudável e diversificado. Estamos aqui pra isso, em prol dos alunos que estão na escola”, conta.

“É fundamental você conhecer o seu fornecedor, quem vai te entregar. Se você colocar um item que ele nem produz, vai dar uma ‘chamada vazia’ e isso não é interessante”, ressalta Francismara Fianco, de Vila Velha.

Thiago Dias Degasperi, diretor da Associação de Produtores Rurais de Roda d' Água e Região (Aproder), em Cariacica, ilustra o que diz Francismara, com alguns casos passados de dificuldades de atendimento à demanda municipal devido à falta de conhecimento da equipe de Nutrição: “antigamente a prefeitura fazia um pedido muito alto de banana e não tinha como atender. Quiabo tinha muita dificuldade porque elas não sabiam a época de produção, a sazonalidade, não é todo mês que tem, é mais no tempo quente. Alface, tem que saber em que época pedir mais”, conta.

 

Visão holística 

Membro do Grupo de Estudos sobre a Questão dos Alimentos da Universidade Federal do Espírito Santo (GeQa/Ufes), Rafaela Brito Fardin afirma que “o profissional nutricionista precisa entender mais de Agroecologia, de Agricultura Familiar”. “É saber, no sentido de viver a experiência. Eu preciso adentrar mais na Agroecologia, participar mais, entender mais da dinâmica das relações”, argumenta a nutricionista, que realiza uma experiência pioneira de contratar diretamente da Agroecologia os mantimentos da merenda escolar em uma escola particular de Vitória.

“A Agroecologia é um campo diferenciado de produção de alimentos, uma ideologia. É uma agricultura que cuida de quem produz, da natureza, da simbiose entre as plantas, é uma visão holística da agricultura”, discursa, com base em sua vivência prática com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).

Mario Lúcio Cordeiro Godinho, da coordenação estadual do MPA/ES, trabalha diretamente com Rafaela nessa experiência piloto, que envolve também a inclusão do aspecto pedagógico da alimentação, daí serem realizadas atividades lúdicas com o alimento, como a feirinha escolar, em que o MPA monta uma pequena feira dentro da escola e as crianças saem com dinheiro e lista de compras, conversando com os agricultores, experimentam novos sabores, cores e perfumes. “É emocionante uma criança de cinco anos olhando o pé de tomate pela primeira vez”, relata o agricultor.

O líder camponês diz que, para o Movimento, o atendimento à escola de Rafaela tem mais um caráter educativo, de formação de público, do que econômico. “Se for considerar só essa escola, não é viável, mas aqui a gente faz a comercialização pela consciência e ambiental, porque sem conscientização do consumidor, a Agroecologia não se viabiliza”, explica.

Agricultura não é máquina

Nessa política de parceria, o número de itens oriundos da Agricultura Familiar têm crescido em Cariacica e Vila Velha. Serão 36 em Cariacica, sendo que 34 são produzidos no município. “Alguns fornecedores já são orgânicos, é um avanço muito grande”, comemora Cleyde.  Em Vila Velha, 2018 terá mais seis novos itens na lista de compra, sendo que as folhagens já são todas orgânicas.

Ambas as profissionais contam que, mesmo com todo o planejamento, imprevistos podem acontecer, afinal, como bem lembra Mário, “a agricultura não é uma máquina que você aperta um botão e pronto. Tem o clima, a água, as intempéries, um conjunto de ações”.

Assim, planejar também possíveis substituições é recomendável. “Essas questões de troca, a lei diz que se for por item for de valor nutricional equivalente, pode fazer”, explica Francismara. “Quando não tem flexibilidade pra trocar, o agricultor acaba criminalizado”, reclama Mario, referindo-se às penalidades sofridas nos casos de imprevistos que impedem a entrega do exato produto contratado e na exata quantidade.

O diálogo permite ainda dar vasão a itens pouco conhecidos dos cardápios mais convencionais e que são bem produzidos em abundância no município, e, por outro lado, incentivar o cultivo de novos itens e alavancar as agroindústrias familiares, para atender à demanda de pães, biscoitos, iogurtes, canjiquinha, fubá, colorau … 

“Sempre que um produtor tem um item novo, igual coco ralado, a gente apresenta esse produto, convoca uma reunião com as nutricionistas pra elas veem de que forma elas podem aproveitar esse item. Tem que haver esse diálogo pra gente pode apresentar nossos produtos”, descreve Thiago.

O 'caro' que sai mais barato

“A legislação diz no mínimo 30%, mas pode ser muito mais. Os produtos são de qualidade superior”, atesta Francismara. “O produto da agricultura familiar é um pouco mais caro. Só que a gente tem que ver que é a qualidade, é agroecológico, orgânico, e nós estamos implementando a política, que mantém o agricultor no campo, evita o êxodo rural”, enfatiza.

Thiago acredita que a maior dificuldade, hoje, para que a Agricultura Familiar expanda sua presença na merenda escolar é de origem eminentemente política. “O problema que eu vejo hoje é político. A chamada pública tem um preço um pouco acima porque prevê os custos de logísticas. Por isso paga uma gordurinha mais no preço, pra manter o homem no campo e evitar o atravessador. E isso não é entendido muitas vezes pelos gestores”, explica.

Um exemplo é a banana. Se com o produtor familiar o preço fica em torno de R$ 3,00 o kilo, no pregão consegue-se a R$ 1,50, até a R$ 1,00. “Mas essa não é a orientação da Lei do PNAE, que existe pra incentivar a agricultura familiar. Existe um contrato e um projeto de venda, e o município nunca cumpre o contrato. Se está previsto 10 mil quilos de banana por ano, sempre fica pela metade ou 70%”, reclama. “Ouço muito as merendeiras se lamentando da qualidade dos produtos das empresas de pregão”, conta.

Cultura da velocidade

Levando essa máxima do PNAE para o universo das escolas particulares, Rafaela diz que “é fazer resistência a todo esse sistema que nos oprime, o agronegócio, que mata a natureza e o indivíduo”, politiza.

No seu caso, livre da burocracia estatal, a maior dificuldade em levar produtos mais naturais para o cardápio dos pequenos vem das próprias famílias. Se a proposta é tirar os embutidos de carne, por exemplo, cheios de agrotóxicos e aditivos químicos nocivos à saúde, e substituir por um ovo caipira orgânico, alguns pais reclamam “meu filho vai comer ovo na escola?”, relata, chamando atenção para a “cultura da velocidade em que os pais vivem e que não lhes deixa ter consciência de todo o mal atrelado aos alimentos industrializados.

“Uma alimentação rica em açúcar refinado e sódio atrapalha todo o desenvolvimento da criança, o seu metabolismo, a sua formação físico, desenvolvimento espiritual, motor, emocional e mental. Excesso de açúcar provoca cansaço, dor de cabeça, devido aos picos de glicose e insulina”, explica. Para habituar o paladar das crianças aos sabores mais dos alimentos mais naturais, a receita é conhecida: insistir. “Oferecer o alimento de oito a dez vezes”, ensina.

Nessa visão mais holística também da alimentação infantil e escolar, é preciso envolver as famílias. “É importante ter acesso a um alimento que fortalece a agricultura local, a economia, a cultura, e preserva a natureza”, conta Rafaela, evocando uma reunião com os familiares dos alunos. “Perguntei pra eles: afinal, o que a gente alimenta quando se alimenta?”, questiona.

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